“Infimidade”
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Imagine que está num museu. Passa por dezenas de quadros, até que um – não sabe bem porquê – o faz parar. Não se trata apenas do que vê, mas do que sente.
Agora, imagine outro cenário. Um laboratório e, ao microscópio, uma imagem. Células tingidas de cores impossíveis, formas que parecem paisagens abstratas. Não está no Museu do Prado, mas algo naquela imagem capta a sua atenção. Uma imagem que pode ser também a chave para uma nova descoberta científica.
Enquanto um investigador cria conhecimento, um artista desperta emoções. Mas a fronteira nem sempre é tão óbvia.
Hoje, falámos com Eloísa Herrera, investigadora CaixaResearch e Profesora de Investigación do CSIC no Instituto de Neurociencias CSIC-UMH, e com Marta Velasco-Velasco, bolseira da Fundação ”la Caixa”, artista plástica e exhibition producer, para perceber como uma imagem científica pode ser, em simultâneo, uma pista para compreender o desenvolvimento do nosso organismo e uma fonte de inspiração visual. Começámos com Marta.
Enquanto artista, o que é que esta imagem lhe transmite?
M: A passagem incessante do tempo, desde as coisas ínfimas às enormes superfícies materiais milenares. De facto, se tivesse de dar um título a esta imagem, a primeira coisa que me vem à cabeça é “Infimidade”.
Faz-lhe lembrar o trabalho de algum artista?
M: A relação entre as formas em movimento e a cor fugaz faz-me lembrar a obra de Helen Frankenthaler. Se pensar mais na textura, nos corpos que “escorrem” e no contraste das cores fugazes, faz-me lembrar a pintura de Tracey Emin.
Marta Velasco-Velasco, bolseira da Fundação ”la Caixa”, artista plástica e exhibition producer.
Não é bem uma pintura, mas sim a imagem de um microscópio. Eloísa, o que é que estamos realmente a ver?
E: Observámos como, durante o desenvolvimento embrionário, as células chamadas células da crista neural, que se podem ver a verde na imagem, viajam para diferentes locais do embrião onde irão formar, entre outras coisas, as estruturas faciais.
Olhando para a imagem, é difícil imaginar o que está por detrás. Pode dizer-nos o que descobriu?
E: Descobrimos que duas proteínas, denominadas ARID1A e ZIC2, ajudam estas células a moverem-se e a iniciarem a sua viagem.
E se estas proteínas não atuassem, o que aconteceria?
E: Nesse caso, as células não receberiam o sinal certo para se moverem. Isto pode levar a malformações craniofaciais, como as observadas em pessoas com síndrome de Coffin-Siris. Esta síndrome, que afeta menos de 200 pessoas em todo o mundo, é uma doença genética rara que causa problemas nos membros, atraso intelectual e malformações craniofaciais.
Que impacto pode ter esta descoberta na saúde?
E: É um passo muito importante para compreender como é que as estruturas faciais se formam durante o desenvolvimento e o que corre mal em certas doenças genéticas. Estamos a abrir a porta a futuras terapias que poderão corrigir ou mesmo prevenir anomalias do desenvolvimento craniofacial.
Eloísa Herrera, investigadora CaixaResearch e Profesora de Investigación do CSIC no Instituto de Neurociencias CSIC-UMH.
Finalizamos a entrevista perguntando-lhes:
Que ligação vocês acham que existe entre arte e ciência?
M: São duas disciplinas que se alimentam mutuamente, que partilham a necessidade de imaginar e de investigar, e que se entrelaçam em diferentes direções. Muitos artistas utilizaram as descobertas científicas do seu tempo como tema para as suas obras, e outros aplicaram inovações tecnológicas, materiais e métodos de produção ao seu trabalho.
Além disso, é fácil encontrar pessoas dedicadas à ciência que têm um profundo interesse pela arte ou que utilizam o desenho para pensar e desenvolver ideias científicas. Um exemplo claro é o do artista indígena da Amazónia Abel Rodríguez. A obra deste colombiano serviu de fonte para estudos botânicos e, ao mesmo tempo, as linhas dos seus desenhos contêm algo de íntimo sobre a sua visão da floresta tropical.
E: Para mim, o principal elo entre arte e ciência é a criatividade. Embora muitas vezes sejam consideradas disciplinas distintas, ambas nascem do mesmo impulso: explorar o desconhecido. Na arte, imaginamos o que ainda não existe; criam-se novos mundos, formas e emoções. Na ciência também imaginamos, mas no nosso caso, o que imaginamos de fato existe — apenas ainda não o conhecemos. A criatividade científica consiste em intuir o que está oculto, formular perguntas que abram caminhos e desenhar estratégias para revelar o que já está lá, esperando para ser descoberto.
Eloísa e Marta deixaram bem claro: a mesma imagem pode dizer-nos coisas muito diferentes. O que para Marta representa formas, texturas e a incessante passagem do tempo, para Eloísa faz parte de uma longa viagem que pode ajudar muitas pessoas.