Estamos mais perto de curar a obesidade? Perguntámos ao especialista
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Uma em cada oito pessoas no mundo vive com obesidade. Desde 1990, a taxa de obesidade nos adultos duplicou e nos adolescentes quadruplicou. Apesar da sua elevada prevalência e estigma, é uma patologia que estamos a compreender cada vez melhor.
Hoje, no âmbito do Dia Mundial da Obesidade, que se celebrou a 4 de março, falámos com o especialista Miguel López, investigador da rede CaixaResearch no Centro de Investigação em Medicina Molecular e Doenças Crónicas (CiMUS) da Universidade de Santiago de Compostela. Discutimos com ele os últimos desenvolvimentos em matéria de obesidade.
Em janeiro deste ano, uma comissão global apoiada por mais de 75 organizações médicas de todo o mundo publicou uma nova definição de obesidade na revista The Lancet: «Condição caracterizada por excesso de gordura, com ou sem alterações na distribuição ou função do tecido adiposo e com causas multifatoriais ainda não totalmente compreendidas». Por outro lado, os especialistas propõem uma abordagem mais integral que, para além do índice de massa corporal (IMC), inclua o nível de adiposidade e outros fatores determinantes no diagnóstico.
O que é que esta mudança significa, Miguel?
A nova definição de obesidade introduziu nuances. É mais pormenorizada e inclui parâmetros que não eram tidos em conta anteriormente. Mais importante ainda, esta nova abordagem procura ir além do índice de massa corporal (IMC) para diagnosticar a obesidade e reconhece as limitações do método anterior. Outro ponto importante é que dá ênfase ao facto de que o excesso de gordura afeta a função dos órgãos e a saúde em geral, e não apenas a massa corporal. Considera também a natureza multifatorial e complexa da obesidade e a necessidade de diagnósticos personalizados.
Note-se que esta é uma questão controversa. A Associação Europeia para o Estudo da Obesidade (EASO) apresentou uma abordagem diferente, publicada na Nature Medicine. A sua proposta reconhece que o IMC, por si só, não é suficiente para diagnosticar a obesidade e sublinha a importância da distribuição da gordura corporal, ou seja, o local onde se acumula, bem como a presença de problemas médicos, funcionais ou psicológicos. A controvérsia surge devido às implicações que este facto tem no diagnóstico e no tratamento.
No entanto, de um ponto de vista biológico, continua a considerar-se o mesmo que anteriormente: uma situação em que ingerimos mais calorias do que aquelas que conseguimos gastar. Estas calorias são armazenadas sob a forma de gordura e a sua acumulação favorece frequentemente o desenvolvimento de comorbidades associadas, como a diabetes.
A obesidade tem um grande impacto na saúde. Porque é que alguns países ainda não a reconhecem como uma doença?
A obesidade tem um estigma histórico. É muitas vezes interpretada como uma consequência associada a pessoas que não cuidam de si, que comem em excesso e de forma descontrolada. Mas isto é um mito que temos de combater.
É verdade que alguns casos de obesidade estão relacionados com o estilo de vida, mas muitos outros devem-se simplesmente ao “azar” genético, isto é, muitas pessoas herdam genes que as predispõem a desenvolvê-la. Estes genes foram, sem dúvida, muito benéficos do ponto de vista evolutivo em situações de pouca disponibilidade de alimentos.
Em muitos países, é provável que este estigma se mantenha. Felizmente, em Espanha e no mundo ocidental, a obesidade é hoje reconhecida como uma patologia. E digo “felizmente” porque isso permite-nos abordá-la numa perspetiva de saúde pública e trabalhar para reduzir a sua incidência e prevalência. Mesmo assim, em Espanha, deparamo-nos com um paradoxo: o Sistema Nacional de Saúde financia o tratamento de outros fatores de risco e comorbidades, como o tabagismo, a hipertensão, o colesterol e a diabetes, mas não financia o tratamento da obesidade. Tendo em conta os preços elevados dos novos medicamentos contra a obesidade, esta situação está a provocar grandes diferenças sociais no acesso dos doentes ao tratamento.
Que papel desempenha a genética na obesidade?
Como referi anteriormente, muitas pessoas acreditam que a obesidade se deve apenas a uma má alimentação e à falta de exercício físico. No entanto, em muitos casos, a genética desempenha um papel crucial na alteração do sistema que regula o equilíbrio energético. Quantitativamente, é difícil ser preciso, mas estudos com gémeos estimaram a hereditariedade da obesidade entre 40 e 70%.
A obesidade está relacionada com a interação entre um grande número de genes, proteínas e todos os tipos de metabolitos (glicose, lípidos, etc.). Uma mutação num gene que codifica uma hormona ou o seu recetor pode levar à acumulação de gordura. Um exemplo disto é um tipo de obesidade causada por mutações no gene de uma hormona chamada leptina ou do seu recetor, levando à obesidade mórbida.
Todas estas causas genéticas acabam por produzir o mesmo resultado: um desequilíbrio entre as calorias ingeridas e as calorias gastas que pode dever-se a um excesso de ingestão, a uma diminuição do gasto energético ou a uma combinação de ambos.
Podemos então falar de uma única obesidade?
Não. O que acontece com a obesidade é semelhante ao que acontece com o cancro. Não podemos falar de uma única doença. Quando falamos de cancro, referimo-nos a uma série de patologias que partilham uma base comum: a proliferação anormal e descontrolada de células em tecidos onde não deveriam estar. No entanto, existem muitas mutações ou outras causas que conduzem a diferentes tipos de cancro, cada um com tratamentos específicos. O mesmo acontece com a obesidade: diferentes alterações, genéticas ou não, podem levar ao mesmo resultado, mas a origem pode ser muito diferente.
Porque é que o nosso corpo tende a acumular gordura, se esta pode causar patologias?
Há cerca de 300 000 anos, quando o Homo sapiens surgiu, não fazíamos três refeições por dia, e conseguir comida era um desafio. Além disso, tínhamos de estar atentos aos predadores, o que nos obrigava a despender muita energia, tanto para nos alimentarmos como para fugirmos dos que nos queriam devorar. Estas condições adversas favoreceram o sucesso de genes de armazenamento de energia altamente eficientes. É de notar que a seleção destes genes não afetou apenas os seres humanos. Toda a história evolutiva anterior, desde a origem dos animais, favoreceu perfis genéticos muito eficientes em termos energéticos.
Ora, se colocarmos o Homo sapiens num ambiente com excesso de calorias e não houver um gasto adequado dessa energia, é lógico que acumule essas calorias sob a forma de gordura, especificamente triglicéridos. Estes lípidos são ideais para armazenar energia, uma vez que têm o desenho molecular perfeito para este fim. Têm muitas ligações entre os átomos de carbono e são hidrofóbicos, ou seja, não acumulam água, que é acalórica.
Há cada vez mais provas de que a origem da obesidade também está ligada ao sistema nervoso central.
Sim. O controlo do ganho e da perda de calorias é gerido pelo sistema nervoso central. Em particular, há duas áreas-chave envolvidas neste processo: o tronco cerebral e o hipotálamo.
O tronco cerebral, localizado na base do cérebro, na nuca, atua como via de comunicação entre o cérebro, a medula espinal e os nervos periféricos. No meu grupo, concentrámo-nos principalmente no hipotálamo, uma região crucial para os mecanismos relacionados com a sobrevivência, como a ingestão de alimentos e água, o gasto de energia, os ritmos circadianos, o ciclo sono-vigília, a função endócrina e a reprodução. O hipotálamo recebe informações tanto de estímulos sensoriais como de parâmetros metabólicos, como os níveis de glicose, lípidos e hormonas, e junta-as para gerar uma resposta homeostática adequada. Em fisiologia, a homeostase é a tendência dos sistemas e órgãos de se equilibrarem ou funcionarem bem. Uma resposta homeostática pode ser, por exemplo, induzir o apetite quando não são ingeridos alimentos durante um período de tempo prolongado.
Algumas mutações genéticas que afetam os mecanismos de controlo do hipotálamo podem levar à obesidade. Um exemplo clássico é a disfunção do recetor da melanocortina, um tipo de hormona que inibe a ingestão de alimentos. Quando esta hormona está ausente ou o recetor não funciona corretamente, as pessoas têm tendência para comer em excesso.
Se tivesse de destacar o avanço mais promissor da investigação sobre a obesidade nos últimos anos, qual seria?
Eu diria que foi o de Jeffrey M. Friedman, que, em 1994, descobriu a leptina, uma hormona que informa o hipotálamo sobre as reservas de gordura e regula o equilíbrio energético. Mudou a forma como entendemos o metabolismo, a endocrinologia e tudo o que tem que ver com o estudo da obesidade. Houve muitos avanços desde então, mas creio que nenhum contribuiu tanto como o de Jeffrey M. Friedman.
Se tivesse de escolher um mais recente, dos últimos 15 anos, destacaria a criação dos fármacos à base de GLP-1, uma hormona fundamental na regulação da glicemia. Estes medicamentos atuam como agonistas, ou seja, ligam-se ao mesmo recetor e ativam as mesmas vias que o GLP-1. O seu desenvolvimento conduziu a uma mudança de paradigma no tratamento de várias doenças.
Também são muito importantes todos os estudos que nos permitiram compreender melhor a relação entre o hipotálamo e a obesidade. Por exemplo, a identificação da proteína AMPK como um sensor-chave de energia no hipotálamo. O nosso grupo contribuiu ativamente para o seu estudo, uma vez que oferece grandes possibilidades no domínio terapêutico. Os últimos avanços nas “-omics” indicam também que o hipotálamo, uma das áreas do cérebro mais complexas do ponto de vista anatómico e funcional, é ainda mais complicado do que pensávamos. Estes estudos abriram a porta a novas interrogações e a um futuro estimulante. Concretamente, estamos a verificar que é essencial compreender o seu papel fundamental noutras patologias relacionadas com a massa corporal, por exemplo, a caquexia ou diminuição da massa corporal e a anorexia, associadas à inflamação, que acompanham o cancro; este é um tópico em que o meu grupo de investigação está a trabalhar ativamente.
Está a falar dos análogos do GLP-1, em que se baseiam medicamentos como o Ozempic ou o Mounjaro, que reforçam os mecanismos de “queima de gordura”. Funcionam?
Estes medicamentos à base de análogos do GLP-1 constituíram uma revolução no tratamento da obesidade, demonstrando efeitos muito potentes na prática clínica. A chave está no seu duplo efeito muito poderoso, incrível, diria eu: inibem a ingestão e também reduzem a massa corporal. Outro ponto interessante sobre estes novos medicamentos é que não são só eficazes no tratamento da obesidade, mas também ajudam a resolver inúmeras patologias associadas a esta condição, como a diabetes. Os ensaios clínicos estão mesmo a demonstrar a sua eficácia na prevenção cardiovascular, na proteção renal e na apneia do sono. Para além de todos os efeitos positivos, até agora, não parecem ocorrer efeitos secundários graves, à exceção de alguma intolerância quando as doses são aumentadas e uma sensação de desconforto intestinal ou estomacal.
Há outros tratamentos a serem desenvolvidos?
Muitas empresas farmacêuticas estão agora a concentrar-se no desenvolvimento de tratamentos mais específicos, dirigidos a tipos específicos de obesidade, uma vez que nem todos os doentes respondem da mesma forma a estes medicamentos. Por exemplo, existe um grande interesse nos agonistas triplos (das moléculas GLP-1+, GIP+ e glucagon), que demonstraram efeitos realmente espetaculares (mais de 25% de perda de massa corporal) em modelos pré-clínicos e também em ensaios clínicos.
Um aspeto fundamental a ter em conta no desenvolvimento destes tratamentos é garantir que a perda de massa corporal se concentra na redução de gordura e não na perda de músculo, que pode levar a outros problemas de saúde.
Na minha opinião, o que seria relevante – e a indústria farmacêutica parece estar a ignorar isto – seria o desenvolvimento de medicamentos que não só reduzissem a ingestão homeostática (necessidade de ingerir calorias) e hedónica (prazer de comer), mas também aumentassem o gasto energético ou, idealmente, regulassem tanto a ingestão como o gasto. Outro aspeto muito importante seria conseguir compreender e saber tratar as diferenças de sexo que estão associadas ao desenvolvimento da obesidade.
Podemos esperar um aumento ou uma estabilização dos casos nas próximas décadas?
Estes medicamentos representam um importante passo em frente. Espero que a situação geral se estabilize e que o número de casos comece a diminuir. De facto, existe uma crescente consciência social da importância de um estilo de vida saudável. Também está a haver um trabalho científico e clínico muito importante que está a tentar mudar os hábitos das pessoas. São coisas que não se conseguem de um dia para o outro, mas sou otimista e acredito que, entre o desenvolvimento de novas terapias e a melhoria dos estilos de vida, a situação possa ser controlada pouco a pouco, embora estejamos a falar de muitas décadas.
Que políticas públicas poderiam fazer a diferença na prevenção da obesidade?
É essencial desenvolver o conhecimento sobre os mecanismos que levam à obesidade e, para tal, é fundamental apoiar a investigação, como a Fundação ”la Caixa” está a fazer de uma forma excecional. Sem investimento em investigação, o progresso não é viável. Todos os grandes avanços da história da humanidade passaram por ela, não podemos esquecer. A este respeito, a partilha de informação é essencial para criar uma consciência social e especialmente política sobre estas questões. No que diz respeito à população, é também fundamental promover o desenvolvimento de estilos de vida mais saudáveis e que se aposte no tratamento nos casos em que é necessário.
É importante sublinhar que os médicos é que têm a última palavra no tratamento dos doentes. Devemos esquecer as dietas milagrosas e os medicamentos para queimar gordura (que proliferam na Internet) e falar com profissionais, como endocrinologistas e especialistas em metabolismo, que são os que realmente sabem como tratar e aconselhar os doentes.
O que está a investigar atualmente?
Estamos a fazer investigação para encontrar um tratamento para a obesidade relacionado com o hipotálamo, sem necessidade de intervenções invasivas. A nossa estratégia consiste em utilizar os exossomas, pequenas vesículas que as células produzem para comunicar, e carregá-los com ferramentas que nos permitam modificar as “instruções” do hipotálamo, em particular a atividade da proteína AMPK. O projeto, totalmente financiado pelo CaixaResearch, constituiu um ponto de viragem na linha de investigação.
Tivemos várias publicações em revistas de prestígio, como a Nature Metabolism, em 2021. Também desenvolvemos uma patente, que já foi licenciada e da qual já surgiu uma spin-off chamada Gazella Biotech. Utilizando exossomas, desenvolvemos também outra patente para o tratamento do acidente vascular cerebral isquémico, uma doença associada à obesidade. O artigo sobre este tema foi, aliás, recentemente publicado na revista Metabolism.
As vantagens da terapia com exossomas são: a sua especificidade, o facto de conhecermos perfeitamente o mecanismo de ação (o que não acontece com muitos dos medicamentos em uso ou em desenvolvimento) e a ausência total de efeitos secundários em modelos pré-clínicos. Com os exossomas, tratámos um número muito limitado de neurónios no hipotálamo e obtivemos alterações muito marcadas nos animais estudados, que perdem muita massa corporal independentemente da ingestão. Por outras palavras, conseguimos fazer com que ratos que seguem uma dieta de 60% de gordura percam muito peso, mas sem deixar de comer. Além disso, mantêm a massa corporal baixa durante muito tempo sem quaisquer efeitos secundários associados.
Estamos a tentar, como já referi, desenvolver combinações de exossomas que nos permitam tratar simultaneamente a ingestão e o gasto de energia, modular outras moléculas para além da AMPK e melhorar as suas formas de administração (atualmente, intravenosa).
Essa terapia poderá vir a ser aplicada aos seres humanos?
Espero sinceramente que sim. Estamos atualmente a realizar ensaios para desenvolver um produto que, se for aprovado em todos os requisitos regulamentares, poderá vir a ser utilizado em seres humanos. Mas, para isso, precisamos de obter o financiamento necessário, porque estamos a falar de um processo longo, que custa muitos milhões de euros.
O desenvolvimento de medicamentos, a menos que seja numa situação de emergência global como a COVID-19, em que todos os protocolos são muito acelerados, leva sempre algum tempo. Desde a sua descoberta e publicação até à sua utilização em seres humanos, podem passar facilmente mais de 15 anos. O processo é lento e trabalhoso, e tem de o ser, porque o número de parâmetros a controlar é elevado e, acima de tudo, os efeitos secundários têm de ser evitados.