Desafios e avanços na transplantação de órgãos: uma vida mais longa e melhor para o doente
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A transplantação de órgãos e tecidos é, sem dúvida, um dos grandes marcos da medicina moderna. Não só salvou centenas de milhares de vidas nas últimas décadas, como transformou radicalmente o dia a dia de muitas pessoas, libertando-as de tratamentos longos, invasivos e esgotantes – como a diálise ou a necessidade de estarem permanentemente ligadas a uma máquina de oxigénio em casos de doenças pulmonares avançadas –, permitindo-lhes recuperar a sua autonomia e regressar a uma vida ativa e com maior qualidade.
172 000 transplantes realizados em 2023 a nível mundial, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar deste número admirável, ainda estamos muito longe de satisfazer a procura global: 2 milhões de transplantes por ano.
A transplantação tem uma longa e emocionante história. O primeiro caso de sucesso no mundo foi realizado em 1954 nos Estados Unidos: um transplante de rim entre irmãos gémeos. Em Espanha, o primeiro caso foi realizado em 1965 e, desde então, o país consolidou-se como referência internacional nesta área. Só em 2024, foram realizados 6464 transplantes, que foram possíveis graças à generosidade de 2562 dadores falecidos e 404 dadores vivos. Estes números colocam Espanha na vanguarda, tanto em termos de doações como de número de intervenções. Mas, quais são os desafios que ainda temos de enfrentar para continuar a progredir, tanto a nível nacional como a nível mundial? Como podemos alargar o acesso à transplantação para dar resposta às necessidades de todos os doentes?
Do ponto de vista médico, um dos maiores desafios continua a ser evitar a rejeição do órgão pelo sistema imunitário do recetor. A esta dificuldade junta-se um obstáculo igualmente crítico: a escassez de órgãos. Só em 2023, mais de 100 000 pessoas na Europa estavam em lista de espera para receber um transplante, mas menos de metade conseguiu aceder a um. Esta situação poderá agravar-se nos próximos anos devido ao envelhecimento da população e ao aumento das doenças crónicas não transmissíveis, muitas das quais acabam por requerer um transplante. É o caso, por exemplo, da doença renal crónica – para a qual o transplante renal é uma opção de tratamento – e que, segundo as estimativas, poderá tornar-se em 2040 a quinta causa de morte a nível mundial.
Perante estes desafios, a ciência avança em várias direções. Desde o desenvolvimento de terapias imunossupressoras mais eficazes e com menos efeitos adversos, até à investigação em xenotransplantes – que utilizam órgãos de animais geneticamente modificados – ou em órgãos bioartificiais fabricados em laboratório. Estão inclusivamente a ser desenvolvidos esforços para melhorar a logística e aumentar a disponibilidade de órgãos, otimizando todo o processo de doação e transplantação.
No passado dia 8 de maio, o Debate CaixaResearch aprofundou todos estes desafios e oportunidades, bem como os últimos avanços no domínio da transplantação, com a participação de quatro investigadores de renome:
- Beatriz Domínguez-Gil González é Diretora-Geral da Organización Nacional de Trasplantes (ONT), um organismo dependente do Ministério da Saúde, que coordena e organiza as atividades de doação e transplante de órgãos, tecidos e células.
- Oriol Bestard Matamoros é diretor do Serviço de Nefrologia e Transplantação Renal do Hospital Universitario Vall d’Hebron (HUVH), líder do grupo de investigação em Nefrologia e Transplantação Renal do Vall d’Hebron Instituto de Investigación (VHIR) e professor associado de Medicina na Universidad Autónoma de Barcelona.
- Xabier Aranguren López é investigador principal do grupo de Geração de Órgãos in vivo através de células estaminais do Centro de Investigación Médica Aplicada (CIMA), da Universidad de Navarra. Entre outras coisas, estuda a geração de órgãos humanos em porcos através de técnicas genéticas.
- Concepción Gómez Gavara é cirurgiã do Serviço de Cirurgia Hepatobiliopancreática e Transplantes do Hospital Universitario Vall d’Hebron (HUVH) e investigadora do Vall d’Hebron Instituto de Investigación (VHIR). Trabalha, entre outros projetos, no projeto Livercolor, que utiliza inteligência artificial para melhorar a seleção de fígados transplantáveis.
O encontro foi moderado por Núria Jar, jornalista especializada em ciência, saúde e informação internacional.
Estas são as principais conclusões a que se chegou durante o debate. Quer juntar-se a nós para as conhecer?
O sistema de doação e transplantação em Espanha
Por que razão o chamado modelo espanhol de doação e transplantação de órgãos é bem-sucedido?
«Somos um país muito solidário, uma sociedade disposta a ajudar, contudo, por si só, não é suficiente para sermos líderes na doação de órgãos. Um dos segredos do sucesso é o Sistema Nacional de Saúde público e de caráter universal. Além disso, temos de falar do fator organizacional, do nosso modelo de doação e transplante, que permite que uma pessoa que está disposta a doar após a morte se torne um dador real». – Beatriz Domínguez-Gil González
São poucas as pessoas que morrem e podem ser dadoras. Para uma pessoa poder ser dadora após a morte, é necessário que tenha morrido em condições muito específicas, na unidade de cuidados intensivos, normalmente ligada a ventilação mecânica e sem contraindicações médicas para a doação. Apenas entre 1 e 2% das pessoas que morrem num hospital o fazem nessas circunstâncias». – Beatriz Domínguez-Gil González
«O nosso sistema foi concebido para identificar sistematicamente as pessoas que morrem nestas circunstâncias únicas, para adotar uma abordagem muito profissional em relação a uma família enlutada e para garantir que as diferentes fases do processo de doação decorrem da melhor forma possível. O nosso modelo gira em torno do coordenador de transplantação dos hospitais e da coordenação, a nível supra-hospitalar, da Organización Nacional de Trasplantes e das Coordinaciones Autonómicas. É um modelo organizacional que nos permite transformar a solidariedade dos cidadãos em doação e transplante reais.». – Beatriz Domínguez-Gil González
A partir de que idade e até que idade é possível doar órgãos?
«Em princípio, não há limite de idade para a doação, uma vez que é feita uma avaliação individualizada das características de cada dador. É verdade que, com a idade, ocorrem alterações relacionadas com o envelhecimento dos órgãos, pelo que, numa idade mais avançada, se torna cada vez mais difícil ser dador de coração ou de pâncreas, por exemplo. Ainda assim, as equipas de transplantação aprenderam a transplantar com sucesso órgãos altamente complexos provenientes de pessoas de idade muito avançada». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Existem muito poucas contraindicações absolutas para a doação de órgãos. Ocorrem apenas em casos de dadores com tumores metastáticos, tumores extremamente agressivos ou determinadas infeções». – Beatriz Domínguez-Gil González
Quem tem prioridade no momento de receção de um órgão?
«Existe uma grande disparidade entre os doentes que necessitam de um transplante e os órgãos disponíveis, razão pela qual todos os sistemas de transplante possuem sistemas de atribuição de órgãos que têm em conta a componente médica e garantem um acesso equitativo». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Em Espanha existe um modelo misto de atribuição de órgãos, nacional e regional/local. Por um lado, a nível nacional, existe uma atribuição de órgãos para doentes em situação crítica, com um risco muito elevado de morte num curto espaço de tempo. No momento em que surge um dador compatível, esse órgão vai para esse doente. Também têm prioridade os doentes difíceis de transplantar, doentes que normalmente rejeitam a maioria dos órgãos disponíveis. No momento em que encontramos o dador ideal para esse recetor, ser-lhe-á dada prioridade sobre todos os outros. Por último, a nível nacional, também é dada prioridade às crianças, porque são muito difíceis de transplantar, e aos doentes que precisam de transplantes combinados». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Abaixo destes doentes com prioridade, é efetuada uma atribuição regional e local com o objetivo de diminuir os tempos de isquemia (o período em que o fornecimento de sangue, oxigénio e nutrientes a um órgão ou tecido é interrompido) e diminuir os custos de transporte de órgãos. Esta atribuição regional e local também segue critérios clínicos, ou seja, é dada prioridade ao doente que se encontra em situação mais precária e com maior risco de morte». – Beatriz Domínguez-Gil González
Os desafios médicos da doação
Qual a dificuldade em selecionar os órgãos realmente ideais para transplante?
«A forma habitual de avaliar um órgão é através das suas características morfológicas. Por exemplo, sabemos que os fígados que acumulam mais gordura tendem a ser mais amarelados e com bordas mais arredondadas, e sabemos que os fígados com mais de 30% de gordura acumulada podem falhar. A forma objetiva de avaliar esta situação é através de uma biópsia hepática, ou seja, retirar uma pequena amostra do fígado e analisá-la ao microscópio. – Concepción Gómez Gavara
«Muitas vezes, este procedimento não está disponível, precisamos de rapidez e temos de trabalhar em contrarrelógio. Neste caso, a única forma de avaliar esses órgãos é através da opinião da pessoa (do cirurgião) que avalia o fígado, o que às vezes pode levar-nos a descartar órgãos que poderiam ser válidos para doação. Por conseguinte, temos vindo a desenvolver, desde 2018, o projeto Livercolor com o objetivo de treinar um algoritmo de inteligência artificial (IA) que, com base numa imagem, nos pode dar uma resposta objetiva numa questão de segundos sobre se um fígado em avaliação é adequado para transplante». – Concepción Gómez Gavara

Concepción Gómez Gavara
«Graças ao apoio do concurso CaixaImpulse Inovação em Saúde da Fundação ”la Caixa”, este projeto é agora uma realidade. Criámos uma aplicação para tirar fotografias de casos dos hospitais que colaboram connosco. Os resultados obtidos são muito mais precisos do que os obtidos através do método de avaliação padrão. Ainda assim, a decisão final caberá sempre ao profissional, ou seja, estas ferramentas de inteligência artificial são um apoio». – Concepción Gómez Gavara
Além do fígado, este método de IA pode ser utilizado noutros órgãos?
«Precisamos de treinar o algoritmo com muitos dados para que os seus resultados tenham uma precisão muito elevada. Acreditamos que até ao final de 2026 disporemos de 1000 casos, o que provavelmente será suficiente para começar a utilizá-lo a nível clínico. Começámos com o fígado, mas também começámos a desenvolvê-lo para os rins. Trata-se de treinar algoritmos para analisar imagens macroscópicas, pelo que, em princípio, pode ser alargado a qualquer órgão». – Concepción Gómez Gavara
Que estratégias são seguidas para evitar a rejeição do órgão transplantado?
“Atualmente, somos capazes de distinguir com precisão os doentes suscetíveis de desenvolver rejeição se tiverem uma doença preexistente que possa causar rejeição e somos capazes de gerar uma resposta imunitária precisa para que a rejeição não ocorra. No entanto, existe outro grande grupo de doentes, que não têm doenças preexistentes que possam indicar rejeição, que identificámos relativamente mal». – Oriol Bestard Matamoros

Oriol Bestard Matamoros
«Uma das principais linhas de investigação em transplantação a nível mundial consiste em identificar melhor o risco imunológico de cada doente, a fim de conceber tratamentos que suprimam a resposta do seu sistema imunitário ao órgão. Desde as diferenças genéticas entre o dador e o recetor e a ativação dos linfócitos, que são as células que podem causar a rejeição, tudo está a ser estudado. Há toda uma linha de investigação muito ativa, mas que ainda não conseguimos integrar na prática clínica». – Oriol Bestard Matamoros
Quais são os riscos associados à medicação imunossupressora?
«Atualmente, a grande maioria dos doentes recebe exatamente a mesma quantidade de tratamento imunossupressor. Temos de aprender a identificar aqueles que podem viver apenas com um medicamento em doses baixas e aqueles que necessitam de diferentes combinações de medicamentos. O tratamento é o mesmo para todos e os transplantologistas lidam com as complicações que possam surgir. Por exemplo, a rejeição num doente transplantado pela primeira vez é de cerca de 5 ou 6%, mas o tratamento imunossupressor que recebe produz outros efeitos secundários a nível do metabolismo ou do sistema cardiovascular que têm de ser geridos». – Oriol Bestard Matamoros
Em que soluções estão a trabalhar nesse sentido?
«Estamos a tentar encontrar uma família de medicamentos ou uma molécula que atue diretamente no sistema imunitário e evite os efeitos secundários. Isto pode ter de ser feito à custa de uma pequena mudança do paradigma com que os médicos trabalham e de aceitar uma taxa ligeiramente mais elevada de rejeição controlada. O nosso projeto, que conta com o apoio do concurso CaixaImpulse Inovação em Saúde da Fundação ”la Caixa”, tira partido da biologia molecular e do desenvolvimento tecnológico a nível proteico para criar uma molécula complexa que iniba especificamente o sistema imunitário. Procuramos abrandar a ativação dos linfócitos T, permitindo simultaneamente que as células reguladoras mantenham a sua atividade. Por outras palavras, procuramos cuidar da resposta protetora do doente enquanto controlamos a resposta imunitária que leva à rejeição». – Oriol Bestard Matamoros
O desafio da escassez de órgãos
A OMS afirma que são necessários dois milhões de transplantes para satisfazer a procura global. Estamos longe destes números. Que soluções estão a ser estudadas?
Há três grandes estratégias. A primeira é a xenotransplantação, o transplante de órgãos de animais para humanos. Neste caso, trata-se essencialmente do transplante de órgãos de porco que foram geneticamente modificados para evitar a rejeição em humanos. A segunda é a dos organoides impressos em 3D, uma tecnologia que envolve a utilização de diferentes tipos de células e a utilização de impressoras 3D e biomateriais para gerar estruturas tridimensionais que se assemelham a órgãos. Atualmente, ainda só é possível gerar órgãos de tamanho muito pequeno, mas a ideia, no futuro, é conseguir produzir órgãos com o tamanho certo e que possam ser utilizados para transplantação. E a terceira estratégia é a geração direta de órgãos humanos dentro de animais, utilizando células estaminais». – Xabier Aranguren López
Como funciona a geração direta de órgãos humanos dentro de animais?
«A nossa linha de investigação, apoiada pelo concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde da Fundação ”la Caixa”, visa gerar órgãos humanos dentro de animais através de uma técnica chamada transferência de blastocisto. Consiste em modificar geneticamente os embriões de um animal – no nosso caso, um porco – para que não possam desenvolver o órgão em que estamos interessados. Numa fase muito precoce do desenvolvimento embrionário, as células estaminais humanas são microinjetadas no embrião. A partir daí, o animal começa a desenvolver-se, mas como não consegue formar o órgão por si próprio, são as células humanas que o geram. Desta forma, poderíamos gerar órgãos humanos dentro de animais que poderiam ser utilizados para transplantação». – Xabier Aranguren López

Xabier Aranguren
«Trata-se de uma tecnologia muito complexa. Há muitos obstáculos a ultrapassar. Uma das grandes limitações é o facto de as células humanas terem uma capacidade muito baixa de integração em embriões animais. Quando conseguirmos resolver este problema, poderemos começar a falar em gerar órgãos humanos em animais como os porcos. É difícil calcular o tempo, mas registaram-se progressos muito significativos nos últimos anos e é possível que, nos próximos 5 ou 10 anos, comecem a ser gerados órgãos humanos em animais». – Xabier Aranguren López
Os desafios do futuro
O que falta fazer para melhorar ainda mais o trabalho que está a ser realizado em matéria de doação e transplantação?
«Se falarmos da prática de cuidados de saúde, o desafio humano está a tornar-se cada vez mais importante. Há um crescimento exponencial da transplantação, mas as equipas são quase as mesmas de há 10 anos. Além disso, temos o desafio muito importante da mudança geracional. A transplantação deixou de ser uma atividade clinicamente muito atrativa para os profissionais de saúde para se tornar uma terapia tão normal que parece ter perdido a atratividade profissional». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Do ponto de vista da investigação, existem vários desafios. Um deles é mudar o perfil do dador, uma vez que Espanha é um país com uma grande longevidade onde a mortalidade nos jovens por causas evitáveis é baixa. Assim, a maioria dos dadores são mais velhos e temos de garantir que estes órgãos funcionam corretamente nos recetores. Outro desafio é melhorar a chamada doação em assistolia. Por outras palavras, preservar e validar os órgãos doados por pessoas que morrem de paragem cardiorrespiratória, órgãos que sofrem de falta de fluxo sanguíneo e de oxigénio». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Outro ponto a melhorar seria promover mais a doação em vida. Temos um número elevado e crescente de dadores, mas há uma falta de sensibilização para a importância da doação em vida, por exemplo de um rim, que apresenta a melhor taxa de sobrevivência. Além disso, seria importante melhorar a taxa de longevidade dos órgãos para que os doentes não necessitem de outro transplante a longo prazo. Para tal, como já referimos, precisamos de compreender melhor como funciona a imunossupressão e por que razão alguns doentes parecem precisar de muito menos tratamento do que outros». – Oriol Bestard Matamoros
«A inclusão de novas tecnologias pode ajudar-nos a tornar a transplantação novamente atrativa a nível profissional. Projetos como o Livercolor mostram o caminho a seguir. Os médicos querem confiar nas novas tecnologias para tomar decisões mais seguras e mais exatas. Penso que isto será fundamental para assegurar a mudança geracional». – Concepción Gómez Gavara
«Para além de aumentar o número de doações em vida, é também importante melhorar a preservação dos órgãos para ajudar a reduzir as listas». – Xabier Aranguren López
De que forma melhorou a doação em assistolia?
«Os primeiros transplantes realizados com órgãos de pessoas mortas, nos anos 60, foram feitos com órgãos de pessoas que tinham morrido de paragem cardiorrespiratória. Os resultados foram desastrosos e a doação em assistolia passou a fazer parte do passado. Foi nessa altura que a doação em morte cerebral – uma condição que mantém artificialmente a função dos órgãos após a morte cerebral do doente – se estabeleceu como a principal via para a colheita de órgãos. No entanto, a partir da década de 1990, o interesse pela doação em assistolia foi reavivado, uma vez que se considerou que tinha um grande potencial para aumentar a disponibilidade de órgãos e reduzir as listas de espera. Até à data, apenas 26 países do mundo dispõem de programas de doação em assistolia. Espanha é o país com a taxa mais elevada de dadores deste tipo no mundo e o único que conseguiu transplantar todos os tipos de órgãos destes dadores. No ano passado, de facto, pela primeira vez, houve mais dadores em assistolia do que dadores em morte cerebral». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Se em Espanha conseguimos transplantar todos os tipos de órgãos destes dadores, foi graças a estratégias de preservação muito específicas, nomeadamente uma que se designa por perfusão regional normotérmica, que foi descoberta neste país na década de 1990. É por isso que é importante falar sobre este tipo de doação e sobre todas as possibilidades de investigação que traz no domínio da preservação e validação de órgãos». – Beatriz Domínguez-Gil González
Os grandes debates em torno da transplantação
Nos últimos anos, assistimos, por exemplo, ao nascimento do primeiro bebé gestado num útero transplantado. Quais são os dilemas colocados por estes avanços?
«Estamos habituados a pensar que o transplante é válido para órgãos vitais para a sobrevivência. Estes outros tipos de transplantes criam dilemas económicos, centrados na questão de saber se o sistema público deve ou não custeá-los, e dilemas éticos como, por exemplo, a necessidade que uma pessoa tem de ter um filho. Todos têm prós e contras. Ainda assim, penso que não é justo comparar um tipo de transplante com outro, não é justo colocá-los nos pratos da mesma balança. – Oriol Bestard Matamoros
«Quando as inovações são muito disruptivas, passa-se sempre por um período de rejeição. Quando Cristiaan Barnard realizou o primeiro transplante de coração e os doentes morreram em poucos dias, a ética do seu trabalho foi posta em causa. Atualmente, somos cautelosos em relação ao transplante de útero, mas talvez daqui a dez anos o tenhamos normalizado. Ainda assim, devemos pensar que a esterilidade é reconhecida como uma doença, pelo que o que tem de ser discutido é a proporcionalidade das medidas que têm de ser tomadas para a tratar». – Beatriz Domínguez-Gil González
«Outra questão é o que implica atualmente o transplante de útero. É realizado com uma dadora viva que tem de ser submetida a uma histerectomia muito agressiva. Por outro lado, a recetora é submetida a uma terapia imunossupressora, o que significa que, se de facto ocorrer a gestação, o feto desenvolver-se-á num contexto de imunossupressão. Por último, a recetora deve ser submetida a uma nova remoção do útero, uma vez cumprida a sua função. Por conseguinte, a questão que se coloca, a meu ver, é saber se isto é proporcional ao que estamos a tentar resolver. Penso que muitas destas questões serão compreendidas com o tempo e, atualmente, não é fácil um posicionamento contra ou a favor». – Beatriz Domínguez-Gil González
Que dilemas levanta o facto de criar órgãos humanos dentro de outros animais?
«Tudo o que é novo na medicina gera alguma rejeição no início. No caso da geração de órgãos humanos em porcos com células estaminais, estamos a falar de gerar organismos que são de um porco, mas também parcialmente humanos. Além disso, as células estaminais humanas podem sempre ir para outras regiões que não nos interessam, como o cérebro, e ter um porco com uma parte do cérebro humana seria eticamente muito controverso. Como tal, devemos explicar bem o que estamos a fazer e como o estamos a fazer. Acredito que, se, quando os primeiros ensaios clínicos forem efetuados, estes órgãos funcionarem e salvarem vidas, serão gradualmente vistos como algo mais normal». – Xabier Aranguren López
E a utilização da IA na medicina suscita algumas reservas?
«É mais bem aceite pelos doentes, que são sempre muito mais abertos do que os profissionais quando se trata de considerar novas tecnologias. É verdade que, para os profissionais com muita experiência, o facto de uma ferramenta lhes dizer algo diferente daquilo que consideram pode gerar conflitos, mas a realidade é que os algoritmos vão ser treinados com tantos dados que é impossível pensar que, na nossa vida profissional, possamos avaliar tantos casos. – Concepción Gómez Gavara