A revolução terapêutica do ARN
Publicado em
Quando Margaret Keenan, uma mulher de 90 anos de Coventry (Reino Unido), recebeu a primeira vacina contra a COVID-19, tinham passado apenas 11 meses desde a descoberta do vírus que a causou e menos de nove meses desde a declaração de pandemia. Estávamos a 8 de dezembro de 2020 e a biomedicina estava a estabelecer um recorde histórico. Em comparação, a vacina contra o ébola demorou cinco anos a ser desenvolvida e aprovada, e a vacina contra o sarampo, sete anos. Esta rapidez sem precedentes foi possível graças a uma combinação de fatores, entre eles, financiamento e cooperação global excecionais, mas um deles fez toda a diferença: a tecnologia do ARN (ácido ribonucleico ou RNA, na sigla em inglês).
Longe de ser uma solução pontual, este avanço abriu as portas a uma nova geração de terapias: as terapias baseadas em ARN (uma molécula fundamental em processos essenciais como a síntese de proteínas) que estão a revolucionar a medicina ao proporcionar formas mais versáteis, precisas e personalizadas de combater doenças.
“As vacinas de ARN são apenas o primeiro passo de uma revolução. Num futuro próximo, vamos assistir ao aparecimento não só de novas vacinas, mas também de medicamentos que, utilizando uma tecnologia semelhante, vão corrigir ou melhorar várias doenças”, explica Puri Fortes, investigadora CaixaResearch do Centro de Investigação Médica Aplicada (CIMA) da Universidade de Navarra e especialista em novas terapias de ARN para tratar o cancro do fígado.
O potencial é enorme, mas os desafios também: tornar o ARN mais estável no organismo, minimizar os efeitos adversos, direcioná-lo com precisão para os tecidos afetados e aperfeiçoar os modos de administração.
Com a colaboração de cinco investigadores da rede CaixaResearch, analisámos a forma como esta nova geração de terapias, fruto de décadas de investigação silenciosa, poderá marcar o início de uma medicina mais rápida, mais precisa e mais personalizada.
Mais além das vacinas
O ARN é um parente próximo do ADN (ácido desoxirribonucleico) e existe sob diferentes formas. O mais conhecido é o ARN mensageiro (ARNm), que copia as instruções genéticas do ADN e as transporta até aos ribossomas, onde são fabricadas as proteínas essenciais à vida. Esta função de “mensageiro” foi fundamental para o desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19, mas as suas aplicações vão muito mais além.
O grupo de Pascual Torres e Manuel Portero, investigadores CaixaResearch do Instituto de Investigação Biomédica de Lérida (IRBLleida-UdL), está a explorar o seu potencial para tratar a esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença neurodegenerativa grave. “Na ELA, certos tipos de ARNm são alterados, gerando instruções erradas que acabam por produzir proteínas defeituosas”, explica Manuel Portero.

Manuel Portero
A terapia que este grupo de investigação está a desenvolver visa neutralizar um dos ARN defeituosos envolvidos na ELA, através de uma técnica conhecida como antisense RNA ou asRNA (ARN antissentido). Esta técnica consiste na criação de uma pequena sequência de ARN que se encaixa perfeitamente, tal como uma peça de puzzle, no ARN anormal. “Ao ligar-se a ele, impede que este se acumule e seja utilizado pela célula para produzir proteínas erradas, interrompendo, assim, a progressão dos danos celulares”, acrescenta Pascual Torres.
Além disso, este projeto de investigação está a estudar a possibilidade de utilizar estes ARN anormais como biomarcadores da doença, ou seja, como sinais biológicos que ajudem a detetá-la e a acompanhar a sua evolução. “Isto permitiria desenvolver terapias de grande precisão, inclusivamente personalizadas para cada doente. É uma das vantagens mais prometedoras da terapia baseada em ARN”, diz Manuel Portero.
O sistema imunitário como aliado
O ARN está também a revolucionar o tratamento do cancro, especialmente através das imunoterapias e das vacinas antitumorais. A equipa de Toni Celià-Terrassa, investigador CaixaResearch do Hospital del Mar Research Institute (HMRI) de Barcelona, trabalha em novas terapias baseadas no ARN mensageiro que ajudam o nosso próprio sistema imunitário a detetar mais eficazmente o cancro da mama. “Queremos aumentar o número de doentes que podem beneficiar da imunoterapia”, explica Toni Celià-Terrassa. “Além disso, temos outras linhas de investigação onde procuramos conceber tratamentos que previnam o desenvolvimento de metástases, bloqueando os mecanismos utilizados para escapar ao nosso sistema imunitário nos órgãos metastáticos”, salienta.

Toni Celià
No entanto, a área das imunoterapias ainda enfrenta muitos desafios, a começar pela compreensão da complexidade do sistema imunitário a nível individual. Neste contexto, o CaixaResearch Institute, o primeiro centro de investigação especializado em imunologia de Espanha e um dos primeiros da Europa, terá um papel decisivo. “A abordagem pioneira do CaixaResearch Institute é fundamental, uma vez que a imunologia está envolvida na maioria das patologias crónicas, além do envelhecimento e das doenças que lhe estão associadas. Os seus avanços podem ser aplicados a muitas áreas da saúde de uma forma transversal. Por exemplo, estamos a aplicar esta transversalidade nos nossos estudos sobre imunologia tumoral, uma vez que os mesmos mecanismos podem ser relevantes em doenças infeciosas, autoimunes e neuroimunológicas”, explica Toni Celià-Terrassa.
Novas instruções contra o cancro
Para além do ARN mensageiro, existem outros tipos de ARN com um enorme potencial terapêutico. É o caso dos tipos de ARN não codificantes, que não participam na produção de proteínas, mas sim na regulação de múltiplos processos celulares. Muitos destes ARN estão presentes nas células tumorais e podem estabelecer a diferença entre um tumor benigno e um tumor maligno. A equipa de Puri Fortes, investigadora CaixaResearch do CIMA da Universidade de Navarra, está a estudar um deles: um ARN chamado NIHCOLE, fundamental no desenvolvimento do hepatocarcinoma, uma das formas mais agressivas de cancro do fígado.

Puri Fortes
“O NIHCOLE é o nosso ARN não codificante preferido”, explica Puri Fortes. Não se encontra em tecidos saudáveis, mas encontra-se nos tumores da maioria dos doentes com hepatocarcinoma. Se aplicarmos radioterapia ou quimioterapia a estes tumores, quebramos o seu ADN, mas eles sobrevivem graças ao NIHCOLE, que atua como uma poderosa ferramenta de reparação”, explica a investigadora. Por esta razão, o seu objetivo é claro: “Queremos atacar o NIHCOLE para desativar o mecanismo que permite ao tumor reparar o seu ADN. Se não for possível repará-lo, a célula tumoral não conseguirá sobreviver”.
Para além de ter sido identificado no fígado, o ARN NIHCOLE foi identificado noutros tipos de cancro, como o da mama, do pulmão, do cólon e da cabeça e pescoço. “O potencial destas terapias é enorme. Precisamos de descobrir mais ARN como este, conhecer as suas sequências, compreender como se dobram numa estrutura celular e qual é a sua função. Poderemos, desta forma, fazer o caminho inverso e obter milhares de possíveis terapias, de forma muito mais ágil e simples”, afirma Puri Fortes.
Estratégias de precisão para as doenças hepáticas
Entre os ARN não codificantes com maior potencial terapêutico destacam-se o small interfering RNA ou siRNA (pequeno ARN interferente) e o asRNA, ambos capazes de “silenciar” genes específicos. Embora a sua utilização em terapias contra o cancro seja habitualmente investigada, esta ferramenta também demonstra um grande potencial para combater doenças raras. A equipa de Malu Martínez-Chantar, investigadora principal do laboratório de Doenças Hepáticas do CIC bioGUNE, que conta com o apoio do CaixaImpulse Inovação, está a estudar a forma de aplicar esta tecnologia para bloquear um gene envolvido no metabolismo celular. A superexpressão deste gene, ou seja, a produção excessiva da sua proteína, tem sido associada a várias doenças hepáticas raras.

Malu Martínez-Chantar
“Até agora, observámos uma eficácia terapêutica notável em diferentes modelos de doença hepática, desde distúrbios metabólicos até doença hepática alcoólica, toxicidade induzida por paracetamol e certos tipos de cancro, como o colangiocarcinoma”, explica Malu Martínez-Chantar. “Acreditamos que esta estratégia tem um enorme potencial no tratamento de várias doenças hepáticas, tanto inflamatórias como oncológicas.”
O segredo reside em atacar vias moleculares muito específicas. “Estas doenças partilham vias moleculares que contribuem para a inflamação crónica, para o stress oxidativo e para a remodelação excessiva do tecido hepático”, acrescenta a investigadora. “Ser capaz de bloquear estes processos de forma seletiva com siRNA é uma alternativa altamente eficaz e menos tóxica do que muitos tratamentos convencionais.”
Um novo ponto de partida
Os cinco investigadores CaixaResearch partilham da mesma opinião: o ARN vai marcar um ponto de viragem na medicina do futuro. “É perfeitamente possível que, dentro de alguns anos, as terapias de ARN para doenças como as do fígado sejam tão comuns quanto os medicamentos convencionais”, diz Malu Martínez-Chantar. “A sua conceção é muito mais rápida e flexível, o que permite que sejam adaptadas a cada doente e a novos alvos moleculares com maior precisão.”
Puri Fortes levanta uma possibilidade ainda mais disruptiva: “vai permitir-nos criar vacinas personalizadas contra o cancro, concebidas a partir das sequências de ARN próprias de cada tumor. Embora os tumores partilhem o mesmo genoma das células saudáveis, existem proteínas que só aparecem nas células tumorais. Se estas proteínas forem bem identificadas, o resto da tecnologia para desenvolver vacinas já existe. Só falta seguir o processo que todos aprendemos graças à COVID-19: fazer uma PCR para as detetar, criar um ARN que as codifique, introduzi-lo numa nanopartícula… e vacinar o doente”.
O ARN, que durante anos permaneceu em segundo plano, tornou-se o protagonista de uma nova era na medicina, uma era que promete terapias mais inteligentes, personalizadas e eficazes para combater algumas das doenças mais complexas que enfrentamos.