Quarta-feira 23

Ciência ou ficção? Estudos de investigação que parecem saídos de um livro

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Muito antes de o primeiro aspirador robô aparecer, já as leis que viriam a definir a sua relação com os seres humanos tinham sido imaginadas. Quase um século antes de o Sputnik 1 se tornar o primeiro satélite artificial da história, alguém tinha sonhado com ele nas páginas de um livro. Nem sequer a clonagem ou a “desextinção” de espécies escapam ao facto de terem surgido primeiro na mente de um escritor e só depois em laboratórios científicos. Com efeito, ao longo da história, a ficção científica alimentou a imaginação dos investigadores em inúmeras ocasiões, dando origem a avanços que acabariam por transformar o mundo.

As leis da robótica de Eu, Robot, de Isaac Asimov (1950), os voos espaciais de Da Terra à Lua, de Júlio Verne (1865), e a engenharia genética de A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells (1896), são apenas três exemplos de como, por vezes, ler o futuro é o primeiro passo para o construir. 

Por ocasião do Dia Mundial do Livro, exploremos então como alguns dos desenvolvimentos mais disruptivos apoiados pelo CaixaResearch estão a transformar em realidade ideias que, antes, só existiam nos romances de ficção científica.

 

Imitar a natureza para melhorar a saúde

Para um organismo constituído por 70% de água, viver num planeta desértico pode parecer impossível. No entanto, ao observar o comportamento das espécies nativas e utilizar a tecnologia, os protagonistas da saga Dune, de Frank Herbert, acabam por conceber fatos, artefactos e um sistema de cidades que lhes permitem aproveitar ao máximo a escassa humidade presente no ambiente. A fusão entre biologia e tecnologia reflete o princípio do biomimetismo: aprender com a natureza para resolver desafios complexos. Esta abordagem continua a inspirar uma série de inovações no setor da saúde, como novos tratamentos contra o cancro e a regeneração neurológica,  sobre os quais podem ler mais detalhes neste artigo do MediaHub da Fundação “la Caixa”.

Procurando novas formas de fazer com que os tratamentos anticancerígenos cheguem às células tumorais no cérebro, uma equipa de investigadores da Gate2Brain, spin-off do Hospital Sant Joan de Déu, do IRB Barcelona e da Universidade de Barcelona, encontrou rinspiração em um livro. Liderados por Meritxell Teixidó, com apoio do RecerCaixa, CaixaImpulse Validate e CaixaImpulse Consolidate, os investigadores criaram peptídeos lançadeira (pequenas proteínas), que atuam como verdadeiras lançadeiras moleculares que levam o fármaco até ao parênquima cerebral. A ideia de cruzar essa barreira para curar já havia sido imaginada por Isaac Asimov em The Fantastic Voyage (1966), no qual uma equipe de cientistas miniaturizados entra no corpo humano para reparar uma lesão cerebral. Escrito até mesmo antes de se conhecer a existência dessa barreira biológica, o livro antecipa com impressionante precisão um desafio que hoje a pesquisa da Gate2Brain está transformando em realidade.

Outro caso é o do peixe-zebra, capaz de recuperar a sua mobilidade em poucos dias após uma lesão na medula espinal. Esta capacidade extraordinária chamou a atenção de Leonor Saúde, investigadora CaixaResearch do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular. A sua equipa descobriu que, como estes peixes não param de crescer, nunca deixam de criar neurónios, pelo que podem substituir os neurónios perdidos na lesão por neurónios novos. Além disso, a lesão não forma cicatriz nem acumula células senescentes, como é habitual nos mamíferos. Utilizando fármacos para obter resultados semelhantes em ratos, a equipa de Leonor Saúde conseguiu melhorar a recuperação motora e sensitiva destes animais após uma lesão.

 

Pele eletrónica

E se a robótica avançasse ao ponto de se tornar impossível distinguir androides de humanos? Talvez a empatia fosse a única coisa capaz de nos ajudar a distingui-los de nós próprios. A premissa que Philip K. Dick nos apresenta em Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (o romance que serviu de base para Blade Runner) fala-nos de um mundo onde é possível desenvolver pele e órgãos sintéticos tão avançados que são exatamente iguais aos humanos. Embora ainda não tenhamos chegado a este ponto, são muitos os cientistas que partilham este desejo de desenvolver tecnologias que imitem e interajam com o corpo humano.

A investigadora CaixaResearch Ana Pina, da Universidade Nova de Lisboa, está a desenvolver uma pele eletrónica, ou e-skin, composta de una biobateria ultrafina feita de colagénio. Isto permite criar adesivos eletrónicos flexíveis e biocompatíveis capazes de monitorizar a saúde, detetar doenças e regenerar tecidos. “Há coisas que ainda são ficção científica, mas atualmente é possível, por exemplo, recriar as dimensões sensoriais na pele eletrónica. Por outras palavras, já se utilizam materiais integrados numa rede de sensores sofisticados para detetar e responder às capacidades da pele humana, como a temperatura, o suor e a humidade”, explica a investigadora.

Ana Pina

Ainda existem muitos desafios pela frente, como desenvolver materiais com maior biocompatibilidade e durabilidade, uma microeletrónica flexível ou materiais de bateria totalmente biocompatíveis, mas houve muitos avanços nos últimos anos. “Espera-se que os sistemas de pele eletrónica autoalimentados representem um contributo inovador numa sociedade que procura soluções energéticas mais limpas, sustentáveis e eficientes. É aqui que a nossa equipa pretende marcar a diferença no desenvolvimento de biobaterias baseadas em colagénio, que combinam materiais inovadores com microeletrónica flexível para aplicações portáteis”, acrescenta Ana Pina.

 

Gerar órgãos humanos em animais

As páginas de Oryx e Crake, de Margaret Attwood, descrevem um futuro distópico no qual a biotecnologia alcançou níveis que só hoje começamos a imaginar. Entre outras coisas, a sociedade solucionou a escassez de órgãos para transplantes através dos pigoons, porcos geneticamente modificados nos quais se desenvolvem órgãos humanos. O livro aprofunda determinados debates bioéticos atualmente presentes em projetos como o de Xabier Aranguren, investigador CaixaResearch do Centro de Investigação Médica Aplicada (CIMA) da Universidade de Navarra.

O projeto que lidera tem como objetivo resolver a escassez de órgãos para transplantes, uma crise médica global que afeta milhares de pessoas todos os anos, através da criação de órgãos humanos funcionais (como corações ou pulmões) em porcos. “O objetivo de gerar órgãos humanos funcionais em animais situa-se algures entre a ciência e a ficção científica”, observa Xabier Aranguren. “Enquanto cientista, acredito firmemente que a investigação com animais é uma ferramenta essencial para os avanços na biomedicina. No caso específico da criação de órgãos para transplantes, falamos da possibilidade real de salvar milhares de vidas humanas. No entanto, isto não significa que devamos encarar os animais como simples meios ou recursos a explorar.

Xabier Aranguren

Segundo o investigador, existem vários obstáculos, tanto científicos como sociais, que impedem que os transplantes de órgãos humanos gerados em animais se tornem uma realidade clínica. “Do ponto de vista científico, o maior entrave reside na fraca integração das células humanas após serem introduzidas nos embriões animais. Também precisamos de compreender melhor como orientar a criação do tecido de forma precisa, garantindo que as células humanas se integrem apenas no órgão pretendido e não noutras partes do animal”, explica. “Em termos sociais e éticos, o desafio consiste em criar confiança. Existem preocupações legítimas com o bem-estar dos animais, os limites éticos da utilização de células humanas e o risco de eliminar as fronteiras entre espécies.”

 

Imaginar o futuro para alargar as fronteiras do conhecimento

“A ficção científica imaginou grande parte do que a ciência conseguiu e do que conseguirá num futuro próximo. Por exemplo, a literatura está repleta de personagens imortais ou que conseguem vencer o tempo. Atualmente, já se conseguiu abrandar o ritmo de envelhecimento de animais de laboratório, o que nos aproxima deste sonho que até há pouco tempo não passava de uma fantasia. A Internet, a inteligência artificial, o metaverso… tudo isto foi primeiro ficção antes de se tornar realidade”, destaca Salvador Macip, investigador do Barcelonaβeta Brain Research Center (BBRC) da Fundação Pasqual Maragall, apoiada pela Fundação ”la Caixa”.

Salvador Macip

Masip é ainda o autor de Jugar a ser dioses, cuja versão em catalão recebeu o Premi Europeu de Divulgació Científica Estudi General e cuja versão em espanhol recebeu o Premio Nacional de Edición Universitaria por melhor obra de divulgação científica. Para o investigador, a ciência não para de avançar e de propor constantemente desafios éticos que temos de enfrentar. “A ciência não tem de decidir o rumo da humanidade: isso é um trabalho que nos cabe a todos”, explica.

“Deve-se permitir a manipulação genética de embriões humanos? Talvez apenas em determinadas circunstâncias, como para evitar doenças? Ou temos de deixar que cada um escolha para os seus filhos o que quiser (e possa pagar)? Isto é menos ficção científica do que parece. Tomar estas decisões demasiado tarde ou de forma leviana pode conduzir-nos a um futuro distópico”, acrescenta o investigador. “A ficção científica foi sempre um campo de teste de novas ideias. Este poder que tem é único.” Somos nós, humanos, que imaginamos, investigamos e criamos o futuro, mas, acima de tudo, somos nós que escolhemos o rumo a seguir.

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